A CASA DA CULTURA, UM MUSEU DOMICILIAR
A seguir, escrevo brevemente sobre um recorte no time-specific da residência artística Casa de Praia – projeto que propôs realizar uma pesquisa criativa, dentro de um contexto sociocultural e ambiental, da APACC (Área de Proteção Ambiental Costa dos Corais), no estado de Alagoas. Trata-se de um exercício de tradução onde assumo perdas e reconheço singularidades no curso de uma passagem, buscando designar uma situação observada, sigo no desejo de partilhá-la, como lampejo.

Para encarar tal tarefa, tendo a forma de expedição ao exuberante litoral alagoano como matriz, deixo de lado as metáforas da artista exploradora – que, em busca de conhecimento de um "novo mundo", se transforma em coletora de amostragens para criação de operações estéticas – e arrisco falar sobre o que ainda parece aberto à reflexão nesse processo de deslocamento.

Nesse trajeto, um dos primeiros espaços que exerce força de imantação nos artistas articuladores da Casa de Praia é um museu, o Museu da Praia, sediado de maneira privada desde 1974 numa antiga casa de pescadores na praia de Ponta de Mangue, em Maragogi. O pequeno museu, de caráter antropológico e artístico, é aberto ao público apenas na alta temporada de verão – quando seus proprietários se deslocam dos EUA, onde habitam, para a região. Além de realizar esporádicas exposições de arte contemporânea, o Museu exibe, como acervo permanente, objetos artesanais e naturais da cultura da pesca (samburás, trançados em palha, varas e redes de pescar, cascos de tartarugas, etc.) e fotos em preto e branco da região e população praieira na década de 1970. Quando está sem atividades direcionadas ao público ou sem novas mostras, um museu dessa natureza, à beira mar de um local fortemente explorado pela força do empreendimento eco turístico, pode atrair ou não provocar interesse pelas mesmas razões, sobretudo, pela contingência dos elementos reunidos em seu acervo permanente.
Num segundo momento de realização da residência, somos convidados a conhecer outro museu, dessa vez na cidade de São Miguel dos Milagres, a Casa da Cultura, idealizada e mantida há cerca de cinco anos por Genaura Dias da Silva, Dona Gena, uma senhora gentil de 89 anos, entusiasta das manifestações culturais populares, poetisa, ex-vereadora por duas vezes e autora do hino da cidade e do livro “Memórias de São Miguel dos Milagres”, lançado em 2015. Embora haja uma convergência com os propósitos historicistas do Museu da Praia, esse projeto de salvaguarda, como seu nome já sinaliza, objetiva inscrever, de maneira mais abrangente, a cultura de São Miguel, ou seja, seu modo de viver passado para pensar o presente a partir de um conjunto de artefatos, registros e, sobretudo, de relatos orais representativos das relações materiais e simbólicas entre as pessoas dessa localidade.
Bruna Rafaella Ferrer
Como tantos outros museus comunitários [1], à Casa pertence uma coleção formada de maneira espontânea por elementos heterogêneos relativos a práticas comuns de um passado não muito distante, em sua maioria fruto de doações. Nela, D. Gena nos indica a presença de tesouras e navalhas antigas de barbearia, utensílios do trabalho de fundição de ferro, como fole de ar, e das casas de farinha, como pilões, moringa de barro para guardar dinheiro, entre outros. Nos indica e não vemos esses objetos, pois no momento de nossa visita eles se encontram embalados e guardados em armários, ou camuflados com a mobília de sua residência, já que a sede da Casa da Cultura, defronte, precisou ser abandonada por problemas estruturais de grandes proporções.
Na impossibilidade de acessarmos o acervo da Casa, D. Gena media nossa visita a partir de uma longa conversa cheia de narrativas, da mal-assombrada “Casa do Bode do Ponte” às memórias de menina “nascida na praia”, passando pelos problemas de saúde de seu marido, pelo resgate de gatos de rua e pela leitura de poemas. Fala ilustrada por seu livro e pelo mural de fotografias e recortes de jornal presente na sua antessala.
Desse modo, sem apoio institucional e funcionando dentro da moradia de sua mantenedora, a Casa da Cultura pode ser compreendida sob a luz do conceito de museu domiciliar, “que consiste em residências particulares que abrigam e expõem acervos selecionados por seus moradores. São espaços definidos de forma dupla: (1) pelo processo dialógico de troca, marcado pela oralidade, e cuja hospitalidade se faz tão importante quanto os objetos em si e (2) por uma prática de acumulação de objetos diversificados, dentre os quais, muitos relacionados a manifestações culturais locais”.
Na Casa de D. Gena fomos acolhidos em sua vontade de musealizar as vivências de sua comunidade, que, invariavelmente são suas próprias. A ausência de materialidade que nos deparamos mais do que falar sobre precariedade e ser um alerta para denúncia do desinteresse em políticas públicas no âmbito da cultura popular, toca a dimensão viva da Casa como museu domiciliar. O que quer dizer que a urgência e permanência dessa prática se encontra na produção de valor e conhecimento por meio de um dispositivo de escuta, em detrimento da mostra de objetos. E mais, que esse instrumento independente que funciona como exercício de cidadania e preservação de memórias singulares, permanece “inaudível” para a tradição científica e filosófica já que ele escapa à lógica hegemônica de validação patrimonial.

E assim, com objetivos pedagógicos, ao narrar e “demonstrar as coisas antigas”, quando os moradores de São Miguel gozavam de maior liberdade, em contraponto com a ideia excludente de progresso, cheia de “carros e cadeados” no lugar de pessoas circulando e usando livremente o espaço público, a Casa da Cultura se projeta como inteira e ativa.  Se revela como uma invenção cotidiana que assimila o fato que em uma localidade onde não há espaços dedicados a preservação da memória de sua cultura, “o museu é o mundo; é a experiência cotidiana”. Dessa forma opera na contramão de uma ideia de atraso, bem como a de desenvolvimento, atrelada às comunidades litorâneas distantes das grandes capitais; portanto, parte de um esforço concreto por auto valoração, contra o epistemicídio.
[1] “De acordo com Hugues de Varine, museus comunitários são espaços geridos e protagonizados pelas comunidades que os rodeiam e expressam seus desejos de preservar e transmitir suas memórias e processos cotidianos” (BENZAQUEN; LINS; MORAIS; PADILHA, 2020, no prelo).

[2] Conceito desenvolvido pela própria autora e pelos artistas pesquisadores Guilherme Benzaquen, Lúcia Padilha e Marcela Lins.
.